quarta-feira, abril 09, 2014

O descaramento


terça-feira, abril 08, 2014

De regresso para comemorar os 40 anos de Abril com um ramalhete de memórias.

AS CONQUISTAS DE ABRIL

1. A longa sesta de Abril

Com o vinte e cinco do quatro e o triunfo da euforia antifascista, as ocupações selvagens de ministérios e empresas trouxeram o caos ao já de si frouxo tecido produtivo nacional. Com o 11 de Março, a coisa acelerou e avançou-se tendencialmente para a estalinista fórmula de colectivização forçada das fontes de produção, agrárias e industriais, apesar das hostes hegemónicas do PREC nunca terem conseguido desmantelar todas as pequenas e médias empresas privadas. As estruturas associativas dos trabalhadores foram tomadas de assalto pelos comunistas do já rançoso império soviético, criando uma hegemonia quase total na expressão sindical. O 25 de Novembro recuperou o conceito leninista do capitalismo de Estado com toda a sua panóplia de empresas públicas, controladas por uma rede clientelar de ascendidos gestores públicos, graduados de aviário, a coexistirem com um vulnerável sector privado, fortemente dependente da boa vontade e generosidade de um Estado, tomado de assalto e guiado a caminho do socialismo.

Na segunda metade dos anos oitenta, o hegemónico bloco central lançou-nos na aventura da Europa. Digo aventura, porque, tal como muitas outras decisões políticas, a opção não correspondeu a uma estratégia nacional, estudada e pensada, mas a um acto de fuga e ruptura com o passado, sem respaldo na anuência ou na consciência dos portugueses. E a prepotência de uns quantos deslumbrados, aliada à irresponsável cumplicidade dos oxalá-teiros e dos figurões do centrão, wannabes sociais e bourgeois-bohémiens culturais, conduziu ao sedutor fado do Vamos por aqui e seja o que Deus (ups!) quer dizer, seja o que Destino (ou Bruxelas) quiser. Ufana do caminho traçado que lhe permitia cruzar-se, e ombrear uns prestigiantes ça va?, com fulano Delors e cicrano d’Estaing, a elite cá da terrinha punha-se em bicos de pés para as fotografias de família, ao lado de gente que até aí apenas vislumbrara nas pantalhas televisivas… ou nas revistas do avião quando fora às Canárias passar um fim-de-semana de trabalho com a secretária.

Parafraseando o velho Relvas, o de outros tempos, o país era de todos mas o Estado era para os antifascistas. E no meio de embrulhos demagógicos e de Mercedes tecnocráticos, a casta de aprendizes de plutocrata era constantemente engordada com resmas de reconvertidos, de pés-frescos e de ex-qualquer-coisa-do-marxismo-ao-maoísmo-e-até-da-extrema-direita-arrependida. O povo que fizesse manguitos e que chuchasse no que pudesse, e sobretudo que não chateasse quem só lutava pelos seus interesses. Não havia razões para que as gentes se preocupassem pois afinal não estavam no poder aqueles que sabiam o que era melhor para o people? Bem vistas as coisas, se, em nome dos mais altruístas interesses da Humanidade, até se atreviam a arriscar o ridículo de serem apanhados de avental florido num urinol de um qualquer hotel a Oriente de Lisboa, como poderia alguém criticá-los? Que não se preocupasse o povo com referendos, nem com coisa nenhuma. Soberania? O que era isso? Clichés do tempo da outra senhora. Agora tudo era relativo! Estivessem todos muito sossegadinhos que eles tratavam de tudo; nem era preciso assinar.

Deambulando pelas europas, pavoneando-se com estatuto de sócio de country club de restritíssimo acesso, entre o embuchar de dois bocados de apfelstrudel biológico, lá iam falando da parentela lusa, lamentando-a como uma cambada de simplórios, uns mal-agradecidos, que havia que ignorar e, se necessário, meter na ordem. Em nome dos superiores interesses da Europa, a nossa nova pátria, os neófitos zelotas, para marcar pontos, lá tiveram que rematar e amortalhar a agricultura e as pescas de uns incorrigíveis labregos, incapazes de acompanhar o desenvolvimento dos senhores que nos concediam a finesa de se declararem nossos manos. Convertidos aos novos ventos de modernidade libertados pela queda do Muro, lá deram uma volta de colher na liberal salada plutocrática que juntava agora os novos cabos e furriéis empresários, e gestores, com os tenentes e capitães da indústria do tempo do fascismo, devidamente temperada pelos advogados da ribalta. E assim deram início a um obscuro programa de privatizações das empresas intervencionadas, uma boa oportunidade de negócios para a malta do clube, displicentemente benzida pelos novos patrões em Bruxelas.

Para calar as vozes, a generosa Europa lá abriu os cordões à bolsa e enviou uns patacos para distribuir pelo pagode. A casta rejubilou, segura de que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não é da Arte. E aos fumos das últimas patacas de Macau juntavam-se agora os filões dos fundos; uns, ditos sociais, chamados outros infraestruturais. E se alguém, timidamente, lembrava que quando a esmola é grande o pobre desconfia, caíam-lhe em cima com o porrete da opinião publicada, vilificando-o como pobre de espírito ou desqualificando-o como indigente mental ao serviço da reacção e da clericalha. Para melhor desviar atenções inconvenientes, as forças vivas do poder apelaram à tradicional aptidão lusitana para as matemáticas e os problemas mais bicudos, isto é, de menor ângulo, passaram a ser tratados em mesas redondas animadas por bestas-quadradas, aspirantes diferenciais do 33º grau. Nos escritórios das empresas, fundações e associações que, como cogumelos após Primavera regada, surgiram na hora certa, no local ajeitado, o tal influxo de notas finas até provocou bolhas de tanto contar a nova moeda êurica. E os senhores do poder, em total parasitismo com o Estado com o qual já se confundiam, convenceram-se de que o filão era inesgotável e vá de dar esmolas extra aos pobres afilhados que foram locupletados com um sem número de empregos e benesses ditas sociais. Que, a breve trecho, os desventurados que não podem deixar de pagar impostos passaram a ter de cobrir enquanto a fina flor do entulho despesista, viciada em crédito, se enrolava em promíscuos jogos de swing partidário.

Apaziguadas as hostes de baixo com Pão e Circo para entreter a Cidade, ficaram assim garantidos os votos necessários para escorar o sistema da Situação. Com um capo convencido de que era a última coca-cola do deserto, a casta, desbragada pela impunidade, decide então avançar com a aplicação simplex do novo conceito económico de Carteirismo de Estado. E os seus gestores saíram-se tão bem que o país ficou exangue e à beira da bancarrota. Os nossos amigos da onça europeus, preocupados com a resolução dos créditos que nos haviam concedido nos seus areópagos financeiros, destinados na maior parte à adjudicação das obras faraónicas a que nos obrigavam, assustaram-se finalmente com o regabofe. E sem qualquer rebuço democrático lá nos carimbaram com o rebaixado ranking de vice-república, a ser governada por uma peripatética trindade, a que os mais saudosos das coisas do Leste gostam de chamar Troika.

O executivo votado pelo povinho foi então paternalisticamente empossado na figura de factótum, circunscrito essencialmente às tarefas de um publicano arrecadador de impostos. A casta, fiada na protecção do seu escudo invisível, retraiu-se mas lá manteve o business as usual, raspando com Energia as migalhas no fundo do tacho. O povão, acordando estremunhado da longa sesta de Abril, acrisolado pelo elevado espírito cívico que a Nova Educação lhe injectara, quando questionado pelo tribunal da História com um Então e agora? aos costumes disse: Nada! Eles já não dão nada, só roubam … E, ao que tudo indica, prepara-se mesmo para chamar de volta a experimentada pandilha cor-de-rosa que nos trouxe à beira do abismo. Com ela, é certo e Seguro que daremos um passo em frente. Assim com’ assim, o futuro que se lixe …