sexta-feira, julho 22, 2005

Estimado Rebatet

Quanto à questão da soberania mínima ou inexistente, depende do que se considera hoje Soberania. Poderíamos fazer um tratado sobre isso, concomitante com uma Teoria do Estado e do Poder (v.g. a tese de doutoramento de Jaime Nogueira Pinto ou os textos de Martim de Albuquerque, Blanco de Morais ou Adelino Maltez, p.e.). Voltarei ao assunto um destes dias, prometo-lhe (como será de esperar o case study da nação hebraica virá à colação). Mas antes tenciono abordar o tema da Raça, do multiculturalismo e do mundialismo.
Permita-me clarificar alguns conceitos antes de responder à sua questão sobre o Estado Novo. (A propósito, não é nada chato mas sim clarividente e estimulante; tenho uma enorme curiosidade de conhecer a sua idade !)

Pátria e Nação
Os Gregos clássicos confundiam amiúde as designações dos deuses com os próprios domínios destes. De forma análoga, também para nós a Pátria surge muitas vezes confundida com a sua encarnação, a Nação. A Pátria é o Altar memorial da nossa Alma colectiva. Encontramos nela a crepitante e perene lareira do arquétipo Lar que nos aconchega e revigora. Grande Solar mítico, construído por gerações sucessivas de antepassados, a Pátria, de natureza politicamente primordial, é a nossa referência axial no plano do colectivo. A sua evocação, enche-nos de ânimo, marca-nos o rumo e robustece-nos o coração. A sua conceptualização aplicou-se, no passado, às Cidades-Estado da Grécia ou da China como hoje abarca as referências fundamentais das modernas comunidades nacionais.
Por seu lado, a Nação tornou-se a sua carne, o seu corpo e moldura. É a Nação que, consciente de si própria, permite manter a salvaguarda do Fogo sagrado da Pátria, garantindo a sobrevivência do ideal colectivo. Renovada sob os auspícios da verdadeira liberdade, da igualdade de deveres e da fraternidade mais pura, a ideia nacional foi sempre cultivada como um ideal que podia exigir, em caso de extrema necessidade, o sacrifício da própria vida. Embora o conceito lato de Nação se perca nas brumas da memória histórica, é, sobretudo, na Idade Moderna do Mundo Eurocêntrico que ele ganha forma e estrutura quase universal, no corolário da agitação socio-política que levou à queda do Antigo Regime e à nacionalização das monarquias. Construída e sedimentada como um organismo imutável, idealmente idêntico a si mesmo através das vicissitudes do Tempo, a Nação é globalmente definida, para cada comunidade nacional, como uma unidade de destino colectivo projectada na História universal. É por isso meu caro amigo que não concordo consigo quando diz que a Suiça não é uma nação. Quanto à Bélgica ...
Onde desapareceu a Figura Real como elemento de aglutinação identitária procurou-se preencher o vazio com um conjunto de ideias chave das quais sobressaía a substituição de súbditos por cidadãos, em nome da Igualdade. Se bem que saibamos hoje pela etologia, pela sociobiologia ou pela simples observação empírica da realidade que, de facto, haverá sempre uns mais iguais que outros, a adesão colectiva àquela ficção não deixou de empolgar as massas populares, projectando assim uma argamassa nova no edifício nacional. A fim de lhe dar consistência, muitos intelectuais resolveram assumir o que chamaram o exigente dever patriótico de fornecer à Nação todos os elementos que lhe permitissem reconhecer-se como tal. Os sucessos marcantes do seu historial passaram a ser fruto de um proselitismo tenaz, ensinando aos indivíduos o que são, enquadrando-os e incitando-os a difundir, por sua vez, esse valor colectivo como coisa própria sua. O sentimento nacional, nascido da diferenciação cultural ou política, sedimenta-se e consolida-se com a permanente invocação e difusão da herança colectiva, permitindo ganhar consciência da individualidade e singularidade da Nação. No nosso caso, o sentimento diferenciador começara a surgir na agitada Marca de Entre Douro e Minho, provocando o destaque da Galiza, e, como corolário, o fim do seu sonho de independência. Mas é na gesta e na glória dos Descobrimentos e da conquista dos Impérios que a Razão de ser da Nação se afirmou; 1640 deu-nos, finalmente, a prova suprema da Vontade inquebrantável em ser Portugal que, desde então até aos conturbados dias de hoje, jamais perdeu consciência de si próprio.
E o Estado ?
Mas a gestão concreta das actividades da comunidade organizada é conseguida através do recurso a uma estrutura dinâmica, o Estado, cuja concepção, âmbito e estrutura de poder são motivo de divisão ideológica e doutrinal. Idealmente, como forma de justiça, equilíbrio e estabilidade nas relações internacionais, a cada Nação deve corresponder um Estado. Inversamente, pela mesma razão, uma Associação de Estados deve ser, antes de mais, uma Comunidade de Nações. Os Estados multi-nacionais, chamemos-lhes impérios, uniões ou comunidades, sem uma referência identitária que vá para além da figura do Imperatore, real ou virtual, são estruturas frágeis que rapidamente podem entrar em colapso.
A passagem da Nação, real ou embrionária, como princípio intemporal sui generis, a Estado-Nação, organização que não pode perdurar senão adaptando-se, faz emergir a adormecida contradição entre fixidez e evolução. E, no paradoxo, o Estado, instrumento que, em muitos casos serviu a construção da Nação, acaba por engendrar, na sua complexidade ontológica, uma angústia latente — o potencial desaparecimento da Nação. A Nação eterna, ao ajustar-se à estrutura conjuntural do Estado, fica exposta à morbidade e à mortalidade.
A criação de um Estado-Nação foi, na generalidade dos casos, formalmente homologada pelo estabelecimento de uma Constituição submetida ao sufrágio universal, podendo a sua aplicação variar consoante a evolução dos vectores internos de tensão e de poder. A fundamentação moderna e a concomitante formalização das estruturas institucionais e jurídicas, reguladoras organizacionais do Estado, foram ganhando coerência no meio de um processo de agitação turbulenta de reajustamento social. As Nações estrebuchavam, em pleno séc. XIX, numa atmosfera enevoada em nostalgia de glórias passadas, por um lado, e ânsia de afirmação no presente, por outro. No seu seio, a urgente necessidade de reformas sociais surgia descompassada da pusilânime atitude das elites snobs[1] instaladas, não havendo condições adequadamente asseguradas para a sua necessária renovação. À pobreza e à fome, aos anseios e à violência, às promessas e à demagogia de um lado opunham-se, do outro, a surdez, a sobranceria, a inoperância e o temor. O aparecimento do capitalismo industrial veio impor um novo modo de produção e a expansão de um grupo social, o proletariado operário, que fez surgir uma linha de fractura social e uma nova referência identitária. Concorrente da Nação, o Internacionalismo de Proletários de todo o Mundo, uni-vos! surge e difunde-se, tendo por base a pertença de classe contra a união inter-classista em que assenta a pertença nacional. Deste confronto, que constituiu o eixo principal da história europeia do séc. XX, saiu, no entanto, a Nação manifestamente vitoriosa. Se o resultado histórico tem demonstrado uma supremacia incontestável do capitalismo nas relações económicas intra e inter-Estados e o fracasso das tentativas para o substituir por outras formas de produção, não é menos verdade que trouxe também a afirmação persistente da ideia nacional como comunidade fraterna, solidária e protectora. Não foi pois surpresa que quando, no fim do séc. XX, a mundialização do capitalismo começou a ameaçar a soberania dos Estados-Nação, a Nação tenha aparecido como um refúgio e o seu eventual desaparecimento seja percebido como uma terrível e desestabilizante ameaça para a coesão social e para as condições de existência dos mais fracos. É a pertença à Nação que dá ao indivíduo um outro estatuto que não o de simples produtor/consumidor ou utente de serviços.
Tendo subjacente esta maçadora clarificação de critérios conceptuais, permita-me dizer-lhe que o Estado Novo não soube resolver o problema da Nação Portuguesa do séc. XX.
A mentalidade dos seus dirigentes estava ligada a arquétipos e mitos de superioridade civilizacional (que não racial) de origem anglo-saxónica com o permanente complexo de afirmação perante os outros (o vulgar pôr-se em bicos dos pés) tão característico dos franceses. O Estado Novo herdou um complexo territorial e cultural sui generis, a que não soube (por insuficiências culturais e políticas dos seus principais dirigentes, permitindo-me excluir Oliveira Salazar) dar destino. Era tecnicamente um Imperium atípico, com falta de homogeneidade das partes e onde as designações não conseguiam disfarçar a verdadeira realidade colonial (se bem que lá, os cidadãos não tribais, de origem europeia, africana ou asiática tivessem o mesmo tratamento face à lei a sua crioulagem era vista com sobranceria). Ao Imperium faltava-lhe a cabeça (o Rei ou o Imperador) capaz de federar as sensibilidade. Alguns intelectuais procuraram substituir essa lacuna pela ideia da Portugalidade Multicultural mas os pilares de suporte do regime, nomeadamente os militares e os camaleónicos situacionistas (mais salazaristas que Salazar) não permitiram o desenvolvimento dessa ideia- projecto de Nação do séc. XXI, cuja prossecução considero que teria permitido um fim diferente, com uma ideia de futuro genial, solidário e um exemplo para o mundo e sobretudo para África. (não há aqui ingenuidade como alguns estarão neste momento a pensar). Explicitarei melhor a ideia se a isso for desafiado...
Por agora tenho de regressar ao trabalho.

[1] Não deixa de ser interessante notar que o termo de origem inglesa, snob, é um acrónimo que resulta da contracção da designação neo-latina de sine nobilitas. S. nob. era a marca que a secretaria das universidades inglesas apunham nos processos de candidatura dos estudantes que não pertenciam a famílias nobres.

7 comentários:

O Corcunda disse...

Brilhante! A Portugalidade é o nosso ideal... Uma natureza própria de uma subespécie espiritual de Homem!

Muitos Parabéns por esta excelente reflexão!

O Corcunda disse...

AH! E já está linkado, obviamente!

Caturo disse...

De forma análoga, também para nós a Pátria surge muitas vezes confundida com a sua encarnação, a Nação.

Parece-me que há aqui, e no que a seguir é dito, um eco da concepção fascista da relação entre a Nação e o Estado, concepção esta que marcava a diferença essencial entre a doutrina de Mussolini e o Nacional-Socialismo.
Assim, enquanto o Fascismo afirma que é o Estado (neste sentido, a Pátria) que cria a Nação, o NS afirma que o Estado (a Pátria) parte da Nação.

Creio que, de entre estas duas concepções, só a dos NS é verdadeiramente nacionalista; o Fascismo, por seu turno, é um imperialismo (e um Estatismo), não um nacionalismo no verdadeiro sentido do termo.

Rodrigo N.P. disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Rodrigo N.P. disse...
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Rodrigo N.P. disse...

Obrigado pela resposta e pela consideração engenheiro. Devo dizer que precisei de ler este texto duas vezes com atenção, mas ao contrário de Borges eu não avalio a qualidade do que se escreve pela facilidade da leitura e não posso deixar de referir que o texto é de altíssima categoria. O Manuel Azinhal, pessoa que aliás tenho na mais elevada conta intelectual, tinha razão no entusiasmo que demonstrou pela sua chegada à net. Provavelmente poderei arriscar dizer que não pertenceremos exactamente à mesma “família” nacionalista mas confesso que fiquei com elevadas expectativas em relação ao caminho futuro deste blog. Tenho enorme curiosidade em ver aqui abordadas algumas questões que considero “fracturantes” dentro do movimento nacionalista.

Em relação ao que aqui escreveu faço apenas alguns comentários que não devem ,no entanto, ser tidos em especial atenção, até porque desejo que seja o engenheiro a definir a agenda do blog e não torná-lo numa página de resposta às minha considerações.

«Mas é na gesta e na glória dos Descobrimentos e da conquista dos Impérios que a Razão de ser da Nação se afirmou»

Quando afirma que a razão de ser da nação se afirmou com os descobrimentos eu confesso a minha discordância parcial, considero de facto esse o ponto alto da história pátria, mas não a razão de ser da nação, isto porque os descobrimentos encerram uma dimensão civilizacional, direi até ideológica, talvez não na sua génese mas na sua posterior realização, porque quando fala dessa razão de ser refere-se certamente à missão civilizadora de Portugal no mundo. Repare, para mim apenas o Estado pode ser confundido com uma realização ideológica, a nação nunca, a razão de ser da nação, em última análise será sempre a sua eternidade ,a sua perpetuidade, a consecução da sua imortalidade, daí que eu olhe para a fundação do Império como um alargamento do Reino e uma transformação da pátria, mas não como uma expansão da nação( que para mim é indissociável de uma concepção “Volkish”) e creio que é também o não entendimento desta dicotomia, desta distinção, que justifica que com o 25 de Abril tantos nacionalistas tenham considerado a nação como morta ou irremediavelmente perdida. Para mim , o 25 de Abril matou a pátria como a conhecíamos, provavelmente como já era na essência, a pátria aqui entendida como a projecção espiritual da nação, porque o tempo a tinha assim forjado, desmembrou também o Estado português, mas não aniquilou a nação, essa manteve a sua essência matricial no espaço fundacional: a Europa! E o tempo é agora de renascimento, é uma luta que não deve ser encarada com tristeza ou fatalidade mas com uma energia construtora, é o tempo de regressar à memória ancestral, definir novos caminhos e reerguer a nação em busca de uma nova demanda. É preciso cortar amarras e não permanecer ancorados no passado, chorando o que fomos como se condenados estivéssemos. Honrar a nossa história sim, mas conscientes que é preciso encontrar uma nova vontade edificadora, quem não a tiver que se dê por derrotado e se junte aos conformados e aos que traíram, os outros, ainda que poucos, devem apontar caminhos para o futuro. Relembro Spengler :”Uma cultura tem uma alma, enquanto uma civilização é o estado mais artificial de que a humanidade é capaz”.

«A mentalidade dos seus dirigentes estava ligada a arquétipos e mitos de superioridade civilizacional»

Essa superioridade civilizacional é para mim objectiva e indiscutível, não sejamos politicamente correctos logo nós que tão mal nos damos como esse tipo de pensamento. Considero que sob qualquer prisma essa superioridade civilizacional era uma realidade incontornável e mais, não assumir que existia seria ilógico em minha opinião, pois que apenas a consciência de superioridade civilizacional poderia dar à colonização uma justificação moral.

«Alguns intelectuais procuraram substituir essa lacuna pela ideia da Portugalidade Multicultural mas os pilares de suporte do regime, nomeadamente os militares e os camaleónicos situacionistas (mais salazaristas que Salazar) não permitiram o desenvolvimento dessa ideia- projecto de Nação do séc. XXI, cuja prossecução considero que teria permitido um fim diferente, com uma ideia de futuro genial, solidário e um exemplo para o mundo e sobretudo para África. (não há aqui ingenuidade como alguns estarão neste momento a pensar).»

A ideia de portucalidade multicultural arrepia-me, confesso, a multiculturalidade é em boa verdade o inimigo mortal da nação, em minha opinião, claro. Não sei exactamente como pensaria desenvolver esse conceito e por isso abstenho-me de aprofundar as minha considerações sobre a questão, ficará para outra altura com certeza. Não deixo no entanto de salientar que o engenheiro fala em ideia projecto de nação assente nessa concepção de portucalidade multicultural, ora como terá entendido, não concebo uma nação como podendo ser multicultural, poderá ser qualquer outra coisa mas não lhe chamaria nação, para mim entre um conceito e outro existe uma incompatibilidade, um paradoxo.

Não se preocupe com a ingenuidade meu amigo, se assim o posso tratar, a ingenuidade é muitas vezes a força motora das revoluções e o realismo o estado último do conformismo. Precisamos de mais “ingénuos” e menos “realistas”.

Termino com o elogio que lhe dirigi no início, este blog revela uma qualidade invulgar e desejo que tenha a disponibilidade para nele escrever o mais frequentemente possível. Quanto à minha idade, para ser honesto, não tenho certezas, não comecei a contar de inicio, a família garante-me que são 27 anos, os amigos dizem 50 e a namorada queixa-se que são 15 :)

Amanhã vou de férias, desejo-lhe por isso os melhores cumprimentos e muita força para o desenvolvimento do blog.

Marcos Pinho de Escobar disse...

Prezado Engenheiro,

Muito aprecio o que escreve. Continue com a excelente iniciativa. Como se poderia obter a tese de doutoramento do Nogueira Pinto? Na Web?

Obrigado,

MPE