Em, surdina, muito ao longe ouve-se um bater ritmado de botas cardadas, sincronizado com o Grândola Vila Morena.
No purgatório, Mário Cesarinny de Vasconcelos grita desalmadamente pelo Serviço de Quartos: Tragam-me lápis e papel ! Tragam-me lápis e papel !
Satisfeito o gracioso pedido, desata a escrevinhar, surrealisticamente:
Pim ! Pam ! Pum !
E agora já só fala um !
Blog, Leitão da Meta
O Alegre é um pateta !
Blog, oblog, Oblast
E, afinal, o Soares é um traste !
Enquanto isso, noutra dimensão, no cinzento twilight do nosso crepuscular inverno, Medeiros Ferreira, com uma grossura de fazer vir lágrimas aos olhos do Velho Cenoura, rolando os olhos focados para o infinito, com todo o peso do simbolismo ilhéu do seu querido San Miguel, afaga as mágoas, cantarolando a modinha Ponha aqui o sê pezinho:
Não há Vila como ela
tan corisca e tan cadela
cuma Vila d' Alcaïns
deu à lüz nüma grande grüta
o maïor filhe de püta
q'já teve este païs
No antro neo-realista que é o Cabaret de Dámeumcoxe, Jerónimo de Sousa, revoluciona na pista ao som de um Pasodoble vermelho, alapado ao generoso corpo da camarada Odete.
A um canto, um jovem velho (porra !, como é que se chama ? é qualquer coisa como chefe da bancada para lamentar, não sei...)faz exercícios de multiplicação num moderno ábaco, produto da mais moderna indústria nortecoreana, que o camarada Kim Il Sung lhe mandara uns natais atrás.
De supetão, rangem os gonzos da porta que o Jaquim da Bia tinha instalado nos tempos heróicos da Cintura Industrial, recuperada de um casarão de um Legionário que fugira para o Brasil. Um embuçado, coberto de um escarlate manto diáfono que deixa entrever um alvo roupão que já tivera melhores dias, penetra e senta-se atento e vigilante ao que o rodeia.
Será PIDE ?, será agente ?, agente não é certamente que um agente não se veste assim, interrogam-se os presentes.
O barista, o T'Zé Chouriço repara subitamente na imagem que surgia no écran da velha televisão a preto e branco. Na Praça Vermelha, junto ao Kremlin, uma multidão agita-se e ondulam bandeiras. Zé Chouriço, emocionado e saudoso grita : Chiu ! camaradas.
Na pantalha, surge um jovem que sobe para cima de um tanque e canta num megafone, aplaudido pela multidão. Extasiados, os clientes param, alguém desliga o gramofone, e prestam atenção. Aqui e ali, alguns rostos deixam verter uma lágrima de nostalgia.
E eis que surge, em primeiro plano da imagem, o repórter correspondente Ievgueni Serpavitch que procura traduzir para português a tão aplaudida canção:
Um kumunistaa vuava, vuava, duma janhiela du dezimu andar
Cume él, cume él, ainda ya muiitos par'þ atirar
Como se todos tivessem levado um murro colectivo no estômago rebentam, em uníssono a berrar:
Morte ao faxismu ! Morte ao faxismu ! Morte ao faxismu !
Inácio Lãbranca, desempregado desde que nascera e que, entornado , dormitava a um canto, acorda e grita :
Foi golo ? Foi golo ?
Com toda a assistência em estado de choque, à beira de um ataque de nervos, de novo se houvem os gonzos ranger. E o espectral embuçado clama:
'Até amanhã camaradas !
sexta-feira, janeiro 27, 2006
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